Abundavam pela sua cidade as tabernas, quando Náná, pequena, perscrutava o mundo através dos sentidos. Geralmente perto de paragens de autocarro o que lhe permitia a observação (ainda que fugidia) dos corpos desarrumados em nuvens de fumo, da audição das vozes altas e roucas dos homens junto ao balcão, as cascas de tremoços caídas no chão e o mais importante para Náná, aquele cheiro único que por vezes lhe lembrava náuseas, aquele cheiro a azedo, a vinho e ao fermento da cerveja, aquele cheiro humano e de cigarro, de gordura vegetal e animal, aquele cheiro a acordar-lhe a náusea. Ainda assim, Náná teimava o olhar através das portas largas, tantas vezes pintadas de verde garrafa, chão de mosaico encardido, balcão marmoreado da cor do fumo e da fome, ao lado das paragens de autocarro. Nunca a Náná fora pedida ou permitida a entrada numa taberna mas, percebia nos homens um qualquer desespero que ela não sabia a origem, pensava fome vendo as cascas de tremoços, pensava zanga ouvindo as vozes e a já conhecida náusea a atravessar-lhe o pequeno corpo de menina, a náusea da zanga, da fome ou do fumo do desespero, Náná não sabia.
Por isso, naquele fim de tarde de Verão, enquanto Náná jantava no café da esquina, não reconheceu imediatamente o homem. Lembra-se do espanto inicial, do inicio do incómodo a ganhar tamanho em si, uma pequena náusea em crescendo, enquanto o homem que todos os dias lhe servia o café, todas as manhãs lhe servia o café e até ali, para ela, sem rosto, falava sibilando e lhe dizia sem ela poder perceber porquê, que vivia sózinho e à noite, para se entreter, tinha feito aqueles pasteis de bacalhau. Repetiu numa pronúncia que ela nunca lhe tinha detectado sequer, que vivia sózinho, que as noites eram longas e que um homem sózinho...Náná não terminou o jantar nem o deixou terminar a frase, pousou os talheres sobre o prato. Olhou para o homem e impedindo-o de continuar curvado sobre a sua mesa, mãos sapudas a lembrarem-lhe o desespero dos olhos incendiados, disse-lhe traga-me uma água. Nada mais lhe ocorreu que a água e a distância rápida.
Quando lhe trouxe a água, pediu um café. E quando o café chegou, pediu-lhe a conta. Pagou e virou costas, nauseada como há muitos anos não se sentia.
Nunca mais o homem se desnudou. Náná demorou muito tempo a dar-lhe um nome. A perceber quem era aquele rosto. De que vida lhe tinham surgido aquelas palavras, aquela proximidade abusiva de corpo e espaço, aquele sibilar estranho.
Ainda que desencaixado no cenário do actual Séc.XXI, o taberneiro resiste, pensa Náná.
É uma alma muito antiga, segredou-lhe há poucos dias uma amiga, olhando-o.
Náná acredita que sim.
Não percebe contudo, porque se cruzaram.
21 comentários:
Porque raio havia de desaparecer o taberneiro se a taberna apenas se transformou?...pergunto eu...
Para a pequenina Náná, a quem não permitiam a entrada em tabernas, hoje se cruzar com o taberneiro e conhecer-lhe direitinho o suor, o cheiro, o unto e a lábia...digo eu....
Beijos Náná, do ferro de engomar e do vestido azul cobalto
Eu conheço-te... essa forma esse verbo esse presente em passado!
Mas daonde???? Cruzámo-nos em que (cruzes!) de passar-lugar?
Bj
memórias, tempos que se misturam na mente de Náná, que a tornam defensiva e intrigada perante a figura masculina que a aborda. ainda conheço pouco Náná.
Nada acontece por acaso...
Náná voltará às paragens de autocarro de outrora?
Esquecerá o elo de ligação, o cheiro, entre o passado e o presente?
Aguardo!
Abraço
Oh Náná, eu cá acho que as tabernas, seja qual fôr o decór de interiores, continuam a ser uma espécie de catacumbas da masculinidade nostálgica.
Uma espécie de refugiados do copo-de-três, do "havia-de-ser-comigo", "afifa-lhe uma pêra que ela cala-se logo" e outras coisas que o decoro não me deixa pronunciar, sendo eu uma senhora e não percebendo nada, nomeadamente, nem de árbitros nem de caças várias.
Mesmo que tenham, alguns deles, sublinho "alguns", a aparência laboral, social e caseira de séc.XXI, chegam à taberna e soltam toda a sua amplitude "do homem que é homem", quais orgulhosos sobreviventes da espécie.
Minha cara amiga, como "as gajas", já andam por todo o lado e em todos os terrenos, os cruzamentos são inevitáveis.
Salvem-se os tremoços em pratinho branco! Vá-se lá saber porque foram subtituídos por amendoins ou pistachios...
e, já agora, oh Náná, o que nos vale é que eles, os tais alguns, não entram no Salão de Cabeleireiro, Estética, Manicure e Pedicure da Liliete Soraya.
Iriam lá eles perceber o poder redentor do desabafo em forma vaporosa da Elnett Satin ou o shampô chinês em embalagem da Loreal...
Querida Naná
Cruzamo-nos com muita gente, da qual alguma se repete... até aos fins dos tempos ou deles...
Um beijo
Daniel
nunca há acasos - é o que me segreda
a amiga
da amiga,
~
O que resiste, Náná, é a solidão desesperada, a fome reaparecida, o medo inventado,o machismo inapagávél, os infernos interiores por aí, a cada canto de esquina, seja ela de um café ou de uma casa de janelas fechadas.
Belíssimo e pungente, o teu retrato.
Beijo
Porventura não era mais do que um homem referindo a sua solidão minorada com a tarefa de fazer pasteis de bacalhau. A todos nos acontece sermos revisitados por um quadro de infância a propósito (ou a despropósito) de um nome, de um rosto, de um som... Somos nós, feitos também da substância da memória.
um copo de água lava a memória? seria fácil...
os taverneiros subiram aos casinos, entretanto!
dos pastéis de bacalhau não reza a história. nem das solidões anónimas..
um prazer ler-te.
cumprimentos.
Acho que se cruzaram para que a senhora possa compreender que tudo continua na mesma...
E continuam a falar alto até em bons restaurantes. Mas isso não só só eles, elas também o fazem (os que o fazem e as que o fazem)...
Nini
Parece-me que às vezes, quando a solidão das pessoas é enorme, o pensamento fica perturbado e as palavras ditas, ou os gestos de aproximação aos outros, não serão mais do que escapes, tentativas desajeitadas, talvez inconscientes nalguns casos, de minorar o sofrimento. Uma espécie de vómito da própria alma saindo de rompante, de quem já não aguenta a "indigestão" da vida. Como uma náusea profunda que mina o próprio. Somos todos tão complexos!
... se a roupa interior estendida que se vê na imagem, é da mulher do taberneiro, pode-se dizer que a senhora tem muito bom gosto.
"Um pastelinho de bacalhau e um copinho da tinto. Da casa.Não tm pastéis de bacalhau? Então pode ser um copinho de tinto e uma amêndoa amarga. Para rebater."
Abraços e risos.
A
O TEMPO PASSA, NÃO É?
Náná, então??!!!
... e mais roupinha passada?
gosto de te saber
afinal o tempo estagna tão contrário ao ciclo das luas
__
estou de regresso e vá lá: uma pausa para um cházinho?
beijos para ti
também gosto da músia :)
Náná,
A culpa não é das tabernas, que deveriam ser imediatamente classificadas como instituições de utilidade pública. Talvez não todas, concedo, mas seguramente uma boa parte, com balcão marmoreado, é evidente, e petiscos referidos com alguma frequência por uma ilustre comentadora que se me antecipou, e cuja identidade não me é permitido revelar, coño! Pergunto-me como saberá ela tanto sobre a freguesia dos ditos e nobres estabelecimentos :)
A culpa, Náná, também não será do homem solitário, que desde já absolvo por mor dos pastéis de bacalhau e de algum vinhito a mais, quem sabe? :)
A culpa, Náná, a culpa da tua náusea, é tua e só tua. Por que diabo te pões a pensar e a emergir, em vez de tratares da roupinha? Já viste que o estendal só apresenta peças de tamanho reduzido? Que é dos grandes lençóis, das toalhas, dos vestidos, calças, casacos, coletes, saiotes, enfim, daquelas coisas que, de facto, dão trabalho sério de barrela e passagem a ferro? Ah pois, e quem te manda almoçar em tabernas, quando tens certamente um belo Mac QQCoisa por perto, com take-away e tudo (sinal do século XXI, claro). :)
E depois, quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele. As saudades das tabernas proibidas não justificam a frequência das que agora já o não são, Náná.
Vê se atinas, mulher! :)))
O que vale é que andas a escrever umas coisas muito giras.
Um beijinho, nada sibilino. :)
Oh Náná, pá, um dia que os OVNIs,----, desçam à terra,----, hei-de explicar aos verdes que os habitam, como é que eu sei das frequências destes estabelecimentos,-----.
E a evolução da linguagem, morta com o acordo do séc.XXI!
Já não se usa "dar uma lamparina"! Que é feito do "levas já uma galheta", do " tu pôe-te a pau"? Do "tá quieto ó preto"? Do "tu tá calado que as gajas sabem mais que o mestre da música".
("as gajas", para quem não saiba, sempre foram peritas em solfejo)
E, realmente, na fotografia, só aparecem as "truces" e "os peúgos"...
E eu, que a imagino, na sua mestria, a vincar as calças... com pano húmido sobre elas para que não brilhem? Costuras acertadas para que não fique o homem com aparência de pernas entortadas, qual raquítico, coitadinho?
A do terceiro esquerdo, schhhh, deixa os lençóis com vincos! E a dobra torta...vi eu, com estes que a terra há-de comer. Mata-se o homem a trabalhar para ela passar a vida sentada a ver as novelas...quanto mais vadias mais sorte têm, que aquilo ali é "um banana, filha, tudo quanto quer tem".
(ilustração gestual, só ao vivo, of course, coño!:)))
tabernas...
saudades das tabernas
do seu cheiro
do taberneiro
das nanás
abrazo serrano
Segundo a Licínia, "somos nós, feitos também da substância da memória", mas eu não me lembro. Não conheci a Naná na tasca referida, mas sim quando tocámos as mãos no varão de ferro do autocarro sem portas em que seguíamos para a Damaia depois de o motorista ter dado uma guinada numa curva apertada do Monsanto. Ela apertou-me o braço com força, os seus olhos em pudor sobre o carmesim das maçãs do rosto pediam-me desculpa da situação embaraçosa que nos enlaçou. Fingimo-nos estranhos e, de cada vez em que novamente nos encontrávamos no autocarro repelíamo-nos para cantos opostos sempre com os olhos um no outro a medir distâncias.
Enviar um comentário