domingo, 13 de junho de 2010


LOTAÇãO ESGOTADA.

Náná, sem mãos a medir, mas grata
pelas vossas visitas,
promete que voltará.







terça-feira, 4 de maio de 2010

Abundavam pela sua cidade as tabernas, quando Náná, pequena, perscrutava o mundo através dos sentidos. Geralmente perto de paragens de autocarro o que lhe permitia a observação (ainda que fugidia) dos corpos desarrumados em nuvens de fumo, da audição das vozes altas e roucas dos homens junto ao balcão, as cascas de tremoços caídas no chão e o mais importante para Náná, aquele cheiro único que por vezes lhe lembrava náuseas, aquele cheiro a azedo, a vinho e ao fermento da cerveja, aquele cheiro humano e de cigarro, de gordura vegetal e animal, aquele cheiro a acordar-lhe a náusea. Ainda assim, Náná teimava o olhar através das portas largas, tantas vezes pintadas de verde garrafa, chão de mosaico encardido, balcão marmoreado da cor do fumo e da fome, ao lado das paragens de autocarro. Nunca a Náná fora pedida ou permitida a entrada numa taberna mas, percebia nos homens um qualquer desespero que ela não sabia a origem, pensava   fome vendo as cascas de tremoços, pensava zanga ouvindo as vozes e a já conhecida náusea a atravessar-lhe o pequeno corpo de menina, a náusea da zanga, da fome ou do fumo do desespero, Náná não sabia.

Uma a uma as tabernas plantadas junto às paragens de autocarro foram sumindo da sua cidade, humilde e lentamente dando lugar a snack bares de bairro, onde as mulheres já entravam. Onde os homens agora   pareciam envergonhados de falarem com voz farta dos seus desesperos e de deitar cascas de tremoços para o chão e assim Náná  se esqueceu  das tabernas que outrora tinham povoado a sua curiosidade de menina. Náná durante muitos anos esqueceu aqueles olhares incendiados de homens com fome, os dedos grossos nas mãos enegrecidas, o som das palavras sibiladas, a lembrar serpentes, as curvas das costas dos homens que lhe pareciam animalescos no seu parco mundo infantil, de homens.

Por isso, naquele fim de tarde de Verão, enquanto Náná jantava no café da esquina, não reconheceu imediatamente o homem. Lembra-se do espanto inicial,  do inicio do incómodo a ganhar tamanho em si, uma pequena náusea em crescendo, enquanto o homem que todos os dias lhe servia o café, todas as manhãs lhe servia o café e até ali, para ela, sem rosto,  falava sibilando e lhe dizia sem ela poder perceber porquê, que vivia sózinho e à noite, para se entreter, tinha feito aqueles pasteis de bacalhau. Repetiu numa pronúncia que ela nunca lhe tinha detectado sequer, que vivia sózinho, que as noites eram longas e que um homem sózinho...Náná não terminou o jantar nem o deixou terminar a frase, pousou os talheres sobre o prato. Olhou para o homem e impedindo-o de continuar curvado sobre a sua mesa, mãos sapudas a lembrarem-lhe o desespero dos olhos incendiados, disse-lhe traga-me uma água. Nada mais lhe ocorreu que a água e a distância rápida.
Quando lhe trouxe a água, pediu um café. E quando o café chegou, pediu-lhe a conta. Pagou e virou costas, nauseada como há muitos anos não se sentia.

Nunca mais o homem se desnudou. Náná demorou muito tempo a dar-lhe um nome. A perceber quem era aquele rosto. De que vida lhe tinham surgido aquelas palavras, aquela proximidade abusiva de corpo e espaço, aquele sibilar estranho.






Ainda que desencaixado no cenário do actual  Séc.XXI, o taberneiro resiste, pensa Náná.

É uma alma muito antiga, segredou-lhe há poucos dias uma amiga, olhando-o.

Náná acredita que sim.
Não percebe contudo, porque se cruzaram.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Náná, suspira. Pequenas gotas de suor correm lentas pela pele do seu busto, sob o leve e solto vestido de verão comprado muitos anos antes em Marrocos, enquanto com a mão direita vai passando o ferro a vapor sobre os lençóis, notóriamente já muito vividos. Mecânicamente, com a esquerda, vai alisando o pano nas suas fronteiras sobre a tábua, como quem acaricia o dorso de um corpo adormecido. Como se soubesse de cor o afago, e nem termina o pensamento, suspirando de novo. Amaldiçoa, demasiadas vezes para o seu gosto, tal hereditariedade caída nas suas mãos, como as peças de roupa, corpetes e camisas de cambraia, dois séculos antes, caídas nas mãos pouco poupadas de sua bisavó...

Na pequena divisão da casa, banhada pelo sol da tarde já baixo e alaranjado, Náná suada mas vencedora, vai passando a vapor peça a peça, as peças da sua pilha de roupa lavada. És o que fazes, sempre a inquietar-lhe o corpo, por natureza sossegado, num espirito nunca acomodado. És o que fazes, como uma condenação. És o que fazes, como uma provocação. Náná lembra-se inevitávelmente da avó, de quem de resto herdou o nome, e da mãe de sua mâe, Gervaise. Dos homens das suas vidas, das vidas dos seus homens.
És o que fazes.
Aqui e agora, ela é Náná, dona e senhora de um turismo de habitação numa cidade imperfeita de um país qualquer, lavadeira de prognósticos improváveis, engomadeira dos alheios arrebates matinais e nocturnos, malabarista de destinos, cozinheira de mãos largas de pequenos almoços variados, coleccionadora de mapas, guia de visitas culturais e de lazer.

Tem as mãos secas, Náná. Mas não vazias.
Quando, por fim, termina a tarefa demasiado árdua para uma quente e soalheira tarde de estio, Náná acende um cigarro e arregaçando o gasto vestido azul cobalto, senta-se, olhando a serra.

És o que fazes, o bater cadenciado da sentença,
no ritmo da vida e da noite.
Ela sabe a si caber, não ser uma, nem a outra.